(Livro: Fernando Pessoa - Obra poética I - Mensagem - )
Trechos de Jane Tutikian - comentários Dilson Ventura
Por que heterônimos e não pseudônimos? Porque, quando usa um pseudônimo,
um poeta se esconde atrás de um nome falso. É para esconder o nome verdadeiro
que o pseudônimo existe. O heterônimo, ao contrário, não esconde ninguém, é um
personagem, criado pelo poeta, que escreve sua própria obra. Tem nome próprio,
obra própria, biografia própria e, sobretudo, em estilo próprio. Ao criador de
heterônimos se dá o nome de Ortônimo.
(Fernando Pessoa deu vida a personagens que escrevem suas próprias histórias e tinham atitudes particulares, mas que de forma subjetiva relatam, com arte e poesia, fragmentos de sua vida)
CARACTERÍSTICAS
DOS HETERÔNIMOS
ALBERTO CAEIRO: Nasceu 1889 e
morreu em 1915; nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda sua vida no campo. Não
teve profissão nem educação quase alguma. [...] Caeiro era de estatura média,
e, embora realmente frágil (morreu tuberculoso), não parecia tão frágil como era.
[...] Cara rapada todos – o Caeiro louro sem cor, olhos azuis; [...] Caeiro,
como disse, não teve mais educação que quase nenhuma – só instrução primária; morreram-lhe
cedo seu pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos
rendimentos.
RICARDO REIS: Nasceu em 1887
(não me lembro do dia e mês, mas tenho-os algures) no Porto, é médico e está
presentemente no Brasil. [...] Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais
baixo, mais forte, mas seco. (Do que Caeiro, que era de estatura média) [...]
Cara rapada todos – [...] Reis de vago moreno mate; [...] Ricardo Reis, educado
num colégio de jesuítas, é, como disse, médico; vive no Brasil desde 1919, pois
expatriou espontaneamente por ser monárquico. É um latinista por educação
alheia, e um semi-helenista por educação própria. [...] Como escrevo em nome
desses três? [...] Ricardo reis, depois de uma deliberação abstrata, que
subitamente se caracteriza numa ode. [...] Reis escreve melhor do que eu, mas
com um purismo que considero exagerado. [...]
ÁLVARO DE CAMPOS: (o mais
histericamente histérico de mim) [...] Nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro
de 1890 (à 1,30 da tarde, diz-me o Ferreira Gomes; e é verdade, pois, feito
horóscopo para essa hora, está certo). Este, como sabe, é engenheiro naval (Por
Glasgow), Mas agora está aqui em Lisboa em inatividade. [...] Álvaro de Campos
é alto (1,75m de altura, mais 2 cm do que eu), magro e um pouco tendente a
curvar-se. Cara rapada todos – [...] Campos entre branco e moreno, tipo
vagamente de judeu português, cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao
lado, monóculo. [...] Álvaro de campos teve uma educação vulgar de liceu;
depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e
depois naval. Numas férias fez a viagem ao Oriente de onde resultou o Opiário. Ensinou-lhe latim um tio beirão
que era padre. Como escrevo em nome desses três? [...] Campos, quando sinto um
súbito impulso para escrever e não sei o quê. [...] Caeiro escrevia mal o
português, Campos razoavelmente mas com lapsos como dizer <<eu
próprio>> em vez de <<eu mesmo>> etc. [...] O difícil para
mim é escrever a prosa de Reis – ainda inédita – ou de Campos. A simulação é
mais fácil, até porque é mais espontânea, em verso.
PERSONALIDADES
POÉTICAS
CAEIRO é o homem ligado à
natureza, ele só acredita mesmo no que ouve e no vê. Para ele, não existe
mistério:
O que nós vemos das
coisas são as coisas.
Por que veríamos
nós uma coisa se houvesse outra?
Por que ver e ouvir
seria iludirmo-nos.
Se ver e ouvir são
ver e ouvir?
O essencial é saber
ver,
Saber ver sem estar
a pensar,
Saber ver quando se
vê,
E nem pensar quando
se vê,
Nem ver quando se
pensa. [...]
(HUMANISTA/NATURALISTA)
RICARDO REIS faz uma poesia
clássica, pagã, preocupada com a passagem tão rápida do tempo, que tudo
aniquila, no melhor estilo do poema da Antiguidade, Horácio:
Tão cedo passa tudo
quanto passa!
Morre tão jovem
ante os deuses quanto
Morre! Tudo é tão
pouco!
Nada se sabe, tudo
se imagina.
Circunda-te de
rosas, ama, bebe
E cala. O mais é
nada.
(TEMPORAL)
ÁLVARO CAMPOS, ao contrário de
Reis, é o poeta da modernidade, da euforia e do desencanto da modernidade, da
euforia e do desencanto da modernidade; é o poeta da irreverência total a tudo
e a todos:
LISBON REVISITED
Não: não quero
nada.
Já disse que não
quero nada.
Não me venham com
conclusões!
A única conclusão é
morrer.
Não me tragam
estéticas!
Não me falem em
moral!
Tirem-me daqui a
metafísica!
Não me apregoem
sistemas completos, não me enfileirem conquistas.
Das ciências (das
ciências, Deus meu, das ciências!) –
Das ciências, das
artes, da civilização moderna!
Que mal fiz eu aos
deuses todos?
Se têm a verdade,
guardem-na (...)
(IRREVERENTE)
EXPLICAÇÃO
DE SUA DEPRESSÃO
Há em mim fenômenos de abulia que a histeria, propriamente dita, não
enquadra no registro dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus
heterônimos está na minha tendência orgânica e constante para a
despersonalização e para a simulação. Estes fenômenos – felizmente para mim e
para os outros – mentalizaram-se em mim; quero dizer, não se manifestam na
minha vida prática, exterior e de contacto com outros; fazem explosão para dentro e vivo-os eu a sós
comigo. Se eu fosse mulher – na mulher os fenômenos histéricos rompem em
ataques e cousas parecidas – cada poema de Álvaro Campos (o mais histericamente
histérico de mim) seria um alarme para a vizinhança. Mas sou homem – e nos
homens a histeria assume principalmente aspectos mentais; assim tudo acaba em
silêncio e poesia...
(Me identifico bastante com esse trecho da carta escrita a seu amigo, Adolfo Casais Monteiro, em 17 de março de 1925, ela retrata muito bem a similaridade que existe em mim e Fernando em tratar dos nossos medos e histeria com o "silêncio e a poesia". Será eu também um histeroneurastênico? Acho que não, sou mais introspectivo mesmo...)
DOR
ESCONDIDA
(Autopsicografia)
O poeta é um
fingidor.
Finge tão
completamente
Que chega a fingir
que é dor
A dor que deveras
sente.
E os que leem o que
escreve,
Na dor lida sentem
bem,
Não as duas que ele
teve,
Mas só a que eles
não têm.
E assim nas calhas
de roda
Gira, a entreter a
razão,
Esse comboio de
corda
Que se chama o
coração.
“Aí, o poeta explica o que para ele é a criação de um poema, sugerindo
que existem duas dores, a que o poeta sente e a que ele cria na poesia, e é a
segunda que o torna fingidor. E foi o que Fernando Pessoa fez: fingiu tão completamente
ser outros que não conseguiu encontrar a si mesmo. Mas isso se justifica: para
o poeta, o fingimento é a forma de chegar à verdade essencial, e só se pode
chegar á verdade essencial através do poema.”
(É claro que esse conceito é muito particular e épico também - toda essa definição de verdade essencial era por causa da dor momentânea de Pessoa em relação a seu rompimento com Ophélia, sua namorada, que por ciúmes, assim fala Álvaro de Campos, tinha dela. Hoje não precisamos fingir para fazer poesias; muito pelo contrário, as melhores poesias surgem com a verdade da alma. Ela precisa falar!)
DATAS
IMPORTANTES
Em 1935, Fernando Pessoa escreve a famosa carta ao crítico Adolfo Casais
Monteiro, datada de 13 de janeiro, em que explica como nasceram os heterônimos
e na qual se revela um ocultista, um místico.
Morre no dia 30 de novembro de 1935, às 20h30, aos 47 anos, de cirrose
hepática.
QUEM
É E O QUE FEZ FERNANDO PESSOA
São ensaios, mais de mil poemas, três heterônimos, um semi-heterônimo
desdobrado em dois (Vicente Guedes e Bernardo Soares), mais de setenta pequenos
heterônimos (sem obra consistente), cartas, contos, teatro, textos políticos,
notas etc. É a obra do fingidor, do polêmico, do criador de vanguardas, do
ocultista, do poeta dramático, do poeta das quadras populares, e do
questionador em busca de ser, que foi tanto a sua criação que se perdeu de si
mesmo:
“Quem sou, que
assim me caminhei sem eu
Quem são, que assim
me deram aos bocados
À reunião em que
acordo e não sou meu?”
(Fernando Pessoa foi um gênio! Capaz de criar pessoas imaginárias e viver com elas e para elas. Foi um mestre da poesia, foi um ser romântico e histérico ao mesmo tempo - controvertido em si mesmo. Pessoa foi só! Mesmo rodeado de muitos - heterônimos, poesias, paixões, perdas, dores, conquistas, títulos, denúncias, glórias etc; foi um intelectual incompreendido e um sábio silencioso. Fernando Pessoa foi um artista das letras e com a escrita pintou vários quadros poéticos, criou coreografias e dançou sobre nossos corações com suas belas rimas, PhD na arte de interpretar - ah, esse dom tá no sangue dele! Fernando Antônio Nogueira Pessoa um criador de emoções próprias e sentimentos silenciosos...)